Não esqueço!

Como posso eu esquecer essas mãos,
que inauguraram o corpo,
que arranharam a pele até fazerem cicatriz.

Como posso eu esquecer quem fomos,
ponte suspensa entre dois sonhos,
carne embutida na carne.

Como posso eu esquecer o teu gosto,
cravado nos lábios,
enrolado na língua,
embrutecido no palato.

Enquanto o pestanejar ainda arder o meu olhar,
não esqueço!

Enquanto o arrepio ainda electrizar a flor da minha pele,
não esqueço!

Enquanto a fome ainda for saciada com os teus beijos,
não esqueço!

Em cada voltar de costas,
em cada despedida muda,
em cada sabor que a nada sabe,
em cada som que a nada soa,
…tento esquecer o que não se pode esquecer.

II- É assim que me lembro de nós

Encosto a palma da minha mão à tua pele, tacteio o queixo, vou até ao umbigo e descarrilo no tornozelo, mesmo de olhos fechados conheço cada perímetro do teu corpo. Já te disse que gosto de ti? Que gosto tanto de gostar de ti? Se não o digo mais vezes é para que estas palavras não se tornem banais, quero que reconheças o circunferência, a cor, a textura do que te digo…deste tão bem querer-te.
A infância fora a nossa melhor aliada, tertúlias de duas crianças que corriam de mãos dadas e desbravam a vida, tão simples na altura, com o seu melhor sorriso. E quando me lembro de nós, da nossa meninice, lembro-nos a comer as azedas, a colher margaridas que colocavas no meu cabelo trigueiro, dos lanches preparados pela minha avó, sandes de marmelada com queijo e limonada. Mas a infância ficara há muito para trás, como ficara a adolescência que ainda vinca as nossas rugas de expressão e recorta os contornos dos nossos sonhos, os momentos que declarámos só nossos, o nosso tempo, tornaram-se um ferrete cravado na película mais sensível da memória.
Encontrámo-nos novamente quando já não nos esperávamos encontrar, quando já tínhamos apagado os nossos contactos, quando de tanto mudarmos de residência, já não tínhamos a morada um do outro. Senti-te muito antes do teu rosto atravessar-se no meu olhar, estava a caminho do Museu de Arte Antiga, onde ainda hoje trabalho, e vi uma figura encostada ao ferro forjado da escada, a contemplar a vista sobre o Tejo. Hesitei em falar-te, tínhamos rompido bruscamente quando eu vim estudar para Lisboa, comecei a passar mais tempo com os colegas, a estudar, o tempo era escasso e tornava-se difícil ir ter contigo à terra que sempre nos abrigou e de onde nunca quiseste sair. Acusaste-me de estar a atraiçoar o nosso nós, de trair a promessa de que seríamos incorruptíveis à mudança. Fiquei magoada com a tua brusquidão, refugiei-me ainda mais neste meu novo mundo, quis dizer-te tanto mas nunca me consentistes ou então eu nunca me o consenti…
Antes de te tocar no ombro, viraste-te, o entardecer desenhou o teu perfil, o laranja que rasgava o céu iluminou o castanho do teu olhar, ambos chorámos, ambos sorrimos e encerrámo-nos num abraço apertado. Fomos até minha casa, que tinha alugado acerca de 2 meses na Rua das Janelas Verdes, apaziguámos a nossa saudade, desassossegámos o nosso sossego e voltámo-nos a amar como sempre o fizemos.
E quando, ainda hoje, fecho os olhos e partilho um pouco do silêncio de mim, é assim que me lembro de nós.

Não publicado

Retiro da lamela o rebuçado azul, que levo à boca num instante e acompanho rapidamente com um trago de água. O sabor do comprimido dança na minha boca, as doses têm aumentado de consulta para consulta, o meu médico diz que é normal, para não me preocupar, que mais adiante vai reduzir a dose e passamos à fase do desmame. Ele insiste em dizer nós, como se fosse um plural terapêutico, mas onde está o nós quando as lágrimas escorrem pelo meu rosto assustado, quando me perco no escuro do meu desespero, onde está esse plural?
Pus baixa, eu e o meu médico achámos que era melhor para mim. Desde que tomo a medicamentação, sinto-me num permanente estado de sonolência, anestesiado perante qualquer reduto de tristeza que me tente assombrar.
Como não posso conduzir, apanho o comboio em Alcântara-Terra e vou sem destino pela linha de comboio, deixo que seja a estação a escolher-me e saio onde se inscreve Carcavelos. Molho os meus pés na areia fina, fecho os olhos e é a ti que te vejo, o esvoaçar do teu cabelo com cheiro a hortelã-pimenta, os teus delicados braços a algemarem a minha cintura e, de repente, esboço aquele sorriso que me ensinaste a fazer. Invade-me o teu cheiro, quase sinto a tua pele a cravar-se na minha e arrepio-me. Uma ligeira brisa traz alguns bagos de areia que me fustiga o rosto, acordo deste sonho vigilante e não te vejo, em teu lugar apenas o ondular da maré que vai subindo.
Tiro o livro que me acompanhou durante a viagem de comboio mas não consigo passar do primeiro parágrafo, as palavras embrulham-se umas nas outras e tornam-se numa mancha negra. Relembro as tuas palavras, as tuas cartas, endereçadas a um amor eterno que nunca chegou a eternizar-se. Apesar de sentir a tua ausência em mim, sinto-me menos só quando saboreio as tuas palavras, que de todas as vezes que as leio, conseguem ter o mesmo travo doce, como se fosse a primeira vez que as desvendasse.
Não confesso a ninguém esta saudade, só a nós, a mim e ao meu médico, tranco os momentos que vivemos de mão dada no canto mais oculto da minha saudade, naquela caixa de madrepérola, com o teu nome cravado a letras douradas. Tento enganar os meus lábios com os beijos de alguém, mas a minha boca está impregnada com teu gosto e apenas disfarço o sabor a ti, com o toque insosso de quem se quer fazer querer. Não me permito ceder, abdicar do meu orgulho e telefonar-te a dizer o quanto me fazes falta nos dias de todos os dias, o quanto nos quero a fantasiar, a sermos um só num corpo macio, a seres o pedaço amputado de mim. Quem voa sabe que nem todos acompanham o seu voo, porque quem voa quer ir sempre mais longe para ficar mais perto do que quer. Agarrei a tua mão para acompanhares o meu voo mas depressa te cansaste e, quando menos esperava, abraçaste o chão e despediste-te de mim.
Levanto-me e caminho pela praia, a maresia acaricia o rasto que vou deixando para trás, quero deitar as lamelas fora, lançar ao mar esta saudade embebida de ti. Nós, eu e o meu médico, chegámos à conclusão que talvez prefira esta sonolência a ter de lutar para te esquecer, para te apagar de mim e limpar os teus vestígios do meu corpo…ou talvez seja por ainda não te querer esquecer!

Meditação

Quem acreditou
No amor, no sorriso e na flor
Então sonhou, sonhou
E perdeu a paz
O amor, o sorriso e a flor
Se transformam depressa de mais
Quem no coração
Abrigou a tristeza de ver
Tudo isso se perder
E na solidão
Procurou o caminho e seguiu
Já descrente de um dia feliz
Quem chorou, chorou
E tanto que o seu pranto já secou
Quem depois voltou
Ao amor, ao sorriso e à flor
Então tudo encontrou
Pois a própria dor
Revelou o caminho do amor
E a tristeza acabou...


Tom Jobim

Poema sem rede

Roubas todos os “ses” que me suspendem,
que riscam de pó este poema.
Pintas no meu rosto um sorriso de palhaço,
que embalas num abraço sem rede.

É tão sobre ti este poema!

Os teus passos antecipam-se aos meus pés molhados.
rodopias-me num chão descalço,
amarras a mão à pele que se despe
e esmurras o desejo que se subtrai de nós.

As palavras que se despedem,
no princípio e no fim,
fermentam na boca,
dissolvo-as e torno-as saliva.

É tão sobre ti este poema!


Concede-me apenas mais um minuto,
de todos os minutos que vais tirar ao tempo.

Concede-me apenas mais um sonho,
de todos os sonhos que vais esvaziar ao acaso.

Concede-me apenas mais um beijo
de todos os beijos que vais algemar aos lábios.

Concede-me apenas mais um pouco de ti,
porque é tão sobre ti este poema!

Wanna be my babe?

Já há algum tempo que ando à procura de casa, não sou muito exigente, quero apenas sentir aquele primeiro impacto ao entrar, aquele arrepio na pele como quando sabemos, através de um só olhar, que algo nos pertence, como quando o vendedor, depois de muito catequizar Encontrei a casa ideal para si, que seja mesmo aquela casa, a minha. Mas ultimamente, sempre que o vendedor, de sorriso embutido de branco, abre a porta, o peito pára, entro em sobressalto e nada me agrada, os azulejos com flores marron no hall, o papel de parede do quarto num delírio entre o azul eléctrico e o verde alface, já para não falar da casa de banho, com tantos rebordos dourados que turvam a vista.
Tínhamos um casa linda, pelo menos era o que toda a gente dizia, era antiga mas com persistência fizemos as obras possíveis para ambientá-la às nossas necessidades. A maior parte das obras fizemo-las nós, vestimos uns jeans esfarrapados e umas t-shirts velhas (a tua dizia, I Love Kadoc e a minha, lilás com letras douradas, tinha inscrito Wanna be my babe?) e improvisámos acordes no chão, quando resolvemos afagar e envernizar, nas paredes, quando estucámos e pintámos. Houve uma vez que cobri o teu braço de gesso enquanto dormias, fartámo-nos de rir depois de me dizeres que eu era uma criança grande, assinei no gesso, antes de tu o arrancares, Esta será a casa dos nossos sonhos!. Sorríamos constantemente, lembro-me de quando agarraste o meu corpo e o projectaste delicadamente para cima dos plásticos que cobriam o chão, saboreaste profundamente a cor dos meus olhos, beijaste o meu pescoço, acariciaste o meu peito, a mão deslizou até ao meu sexo e penetraste-me até os nossos corpos adormecerem exaustos.
Acordei em ser eu a sair da casa, porque todos os recantos me fariam recordar-te, todos os recortes por nós projectados seriam demasiado presentes para eu te sobreviver. Aluguei uma casa na margem sul, a janela da sala permitia-me saborear um traço de mar, que o olhar vazio emoldurava como tela a perder a sua aguarela. Nunca fiz qualquer mudança, as mobílias ficaram no mesmo sítio, as paredes da mesma cor, o chão com a mesma carpete, sempre me senti nesta casa como um hóspede. Continuei à procura da casa dos meus sonhos, como também continuei à procura de uma fórmula para te esquecer, mas todas as minhas tentativas, tanto para encontrar a casa como para te esquecer, tornavam-se sempre estéreis.
Hoje o dia tinha amanhecido de orelha murcha, logo pela manhã recebo o telefonema de um vendedor de uma qualquer imobiliária, do outro lado alguém pronuncia a frase feita e combinamos encontrar-nos na rotunda, por baixo do Café Central e por cima da Escola Secundária, por volta das 17h30. Cheguei um pouco atrasada, por causa do trânsito ou por causa da minha frequente distracção com as horas, estacionei o meu carro e seguimos no seu, vasculhava na minha mala de executiva o mail que o vendedor me tinha enviado com as características das casa, encontrei todos menos aquele. Sinto o carro a parar e oiço dizer de forma esfusiante, Chegámos!. Quando levantei os olhos, senti as minhas pernas a tremerem, um nó a comprimir a garganta, subimos as escadas do prédio e, de sorriso colado aos lábios, o vendedor abre-me a porta da casa, O dono quis-se desfazer da casa, disse-me que já não servia aos seus sonhos, não cheguei a perceber porquê!, desta vez acertara, era a casa dos meus sonhos, despojadas dos sonhos que tinham sido nossos…

Explode Coração

Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder
O que não dá mais pra ocultar e eu não posso mais calar
Já que o brilho desse olhar foi traidor
E entregou o que você tentou conter
O que você não quis desabafar e me cortou
Chega de temer, chorar, sofrer, sorrir, se dar
E se perder e se achar e tudo aquilo que é viver
Eu quero mais é me abrir e que essa vida entre assim
Como se fosse o sol desvirginando a madrugada
Quero sentir a dor desta manhã
Nascendo, rompendo, rasgando tomando meu corpo e então
Eu chorando, sofrendo, gostando, adorando gritando
Feito louca, alucinada e criança
Sentindo o meu amor se derramando
Não dá mais pra segurar, explode coração

Maria Bethânia


Para quem me fez franzir a testa
Para quem me fez sorrir por dentro
Para quem me dedicou a letra desta música
Para quem, um dia, quem sabe, será o pauzinho cor-de-azul do meu mikado...

Não devo, mas agradeço
Não devo, mas dedico este momento a ti, que sabes que és tu!


のぞくトム

(Voyeurs)

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