II- É assim que me lembro de nós

Encosto a palma da minha mão à tua pele, tacteio o queixo, vou até ao umbigo e descarrilo no tornozelo, mesmo de olhos fechados conheço cada perímetro do teu corpo. Já te disse que gosto de ti? Que gosto tanto de gostar de ti? Se não o digo mais vezes é para que estas palavras não se tornem banais, quero que reconheças o circunferência, a cor, a textura do que te digo…deste tão bem querer-te.
A infância fora a nossa melhor aliada, tertúlias de duas crianças que corriam de mãos dadas e desbravam a vida, tão simples na altura, com o seu melhor sorriso. E quando me lembro de nós, da nossa meninice, lembro-nos a comer as azedas, a colher margaridas que colocavas no meu cabelo trigueiro, dos lanches preparados pela minha avó, sandes de marmelada com queijo e limonada. Mas a infância ficara há muito para trás, como ficara a adolescência que ainda vinca as nossas rugas de expressão e recorta os contornos dos nossos sonhos, os momentos que declarámos só nossos, o nosso tempo, tornaram-se um ferrete cravado na película mais sensível da memória.
Encontrámo-nos novamente quando já não nos esperávamos encontrar, quando já tínhamos apagado os nossos contactos, quando de tanto mudarmos de residência, já não tínhamos a morada um do outro. Senti-te muito antes do teu rosto atravessar-se no meu olhar, estava a caminho do Museu de Arte Antiga, onde ainda hoje trabalho, e vi uma figura encostada ao ferro forjado da escada, a contemplar a vista sobre o Tejo. Hesitei em falar-te, tínhamos rompido bruscamente quando eu vim estudar para Lisboa, comecei a passar mais tempo com os colegas, a estudar, o tempo era escasso e tornava-se difícil ir ter contigo à terra que sempre nos abrigou e de onde nunca quiseste sair. Acusaste-me de estar a atraiçoar o nosso nós, de trair a promessa de que seríamos incorruptíveis à mudança. Fiquei magoada com a tua brusquidão, refugiei-me ainda mais neste meu novo mundo, quis dizer-te tanto mas nunca me consentistes ou então eu nunca me o consenti…
Antes de te tocar no ombro, viraste-te, o entardecer desenhou o teu perfil, o laranja que rasgava o céu iluminou o castanho do teu olhar, ambos chorámos, ambos sorrimos e encerrámo-nos num abraço apertado. Fomos até minha casa, que tinha alugado acerca de 2 meses na Rua das Janelas Verdes, apaziguámos a nossa saudade, desassossegámos o nosso sossego e voltámo-nos a amar como sempre o fizemos.
E quando, ainda hoje, fecho os olhos e partilho um pouco do silêncio de mim, é assim que me lembro de nós.

2 Responses to “II- É assim que me lembro de nós”

  1. # Anonymous Anónimo

    E a diferenca entre a simples criatividade e a criatividade simples.mantem-te eternamente crianca... criativamente simples!!bjo coca  

  2. # Blogger Joana

    São poucos os blogs de textos compridos que me prendem. Mas acredita que o teu prende...pela qualidade. Escreves de uma forma que permite a quem lê criar imagens das tuas narrações...e são sempre tão docinhas :)
    Um beijinho também ele doce. Felicidades para esta 'história' ;)

    p.s: Ando há imenso tempo para te pedir isto...não te importas que te linke, pois n?  

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