Essencial

Que tendência esta de esquecermos o essencial e de abraçamos o supérfluo! Talvez nem seja uma escolha consciente, é antes uma incapacidade amorfa de não conseguirmos enunciar o que vale mesmo a pena, o que tem real importância para nós. Está tudo envolto numa espessa neblina, que nos tolda a visão e nos cega os afectos.

Vivemo-los às metades, porque dá muito trabalho e implica dispêndio de muita energia e dedicação vivermos os afectos no seu expoente máximo. E por isso dissecámo-los em quartos e amamos um bocadinho, apaixonamo-nos com contenção e entusiasmamo-nos moderadamente. Dizem que devemos entristecer apenas um pouco e alegrarmo-nos não mais que um pouco...mas isto de acondicionarmos os afectos e de os confinarmos a um espaço exíguo, totalmente inapropriado à sua desmesurada proporção, tem tido efeitos perversos em nós. Reduzimos a alegria e diminuímos a tristeza, andamos a colocar pesos na balança para alcançarmos um suposto equilíbrio que não é mais do que uma dormência camuflada, a escala que outrora era de 8 a 80 passou a ser apenas de 34 a 36, a alegria que outrora era vigorosa, passou a ser um sorriso forçado, a tristeza que outrora era compulsiva, é agora um enrugar de testa. Evitar a agonia do sofrimento, a dolorosa sensação de perda e o sacrificial sentimento de desilusão é proibitivo!

E todos sabemos intrinsecamente que qualquer desilusão não é doença crónica, que devidamente medicamentada, com a dose exacta de choro e de luto, é superável e nada mais nos restará do que passarmos à próxima ilusão. A decepção - a discrepância entre o que fantasiámos e a realidade com a qual nos deparamos - é apenas um facto da vida! É como esfolarmos os joelhos, partirmos uns ossos ou sangrarmos a pele, tudo curável, ficam apenas umas cicatrizes que nos permitem acumularmos histórias para contar. E, para além do mais, quando nos (re)iludimos, não temos obrigatoriamente como desfecho a desilusão, poderá acontecer mas também poderá tornar-se uma verdade, com as devidas demão de realidade! Agora se nos colocamos demasiadas vezes fora de combate (porque por vezes temos que dar uns quantos murros e pontapés para seguirmos com a nossa vida), verificamos que a falta de treino coloca-nos automaticamente numa situação de desvantagem…

Quando falo em nós, falo essencialmente em mim, que não sou espelho, nem reflexo dessa maioria silenciosa, falo única e exclusivamente em meu nome. Sempre intelectualizei os afectos, fiz o que de pior se pode fazer à afectividade, racionalizei-a e de tanta análise e dissecação! O meu mundo dos afectos tornou-se um deserto à espera de chuva, à espera que um dia se torne num vale verdejante. Mas também não foi por acaso que preferi tornar os meus afectos em solo erosivo, não sei em que altura da minha vida fiz essa escolha, se se sequer foi uma escolha mas o facto é que me tornei árida...
Esta erosão afectiva deu-me a falsa sensação de controlar os meus sentimentos, de moderar consoante a minha vontade a intensidade dos afectos. Talvez por um dia ter visto a dimensão que os meus afectos sem freio, sem ABS, sem contenção, assumiram e assustei-me, jurei-me a mim própria que nunca mais iria voltar a contactar com esse vampiro descontrolado e ávido de sangue.

Mas ao falar por mim, falo em nome de uns quantos que se possam rever nestes factos da vida, falo daqueles que se boicotam, que não se permitem amar ou simplesmente deixarem-se amar. Falo de quem tem tanto medo, que se deixa paralisar, recolhendo-se na sua zona de conforto, na qual não ama mas também não sofre, no conforto desconfortável de se entristecer apenas um bocadinho, de se alegra apenas um bocadinho.
O medo de facto paralisa, mas também nós podemos paralisar o medo, a escala foi reduzida, mas também nós podemos voltar a amplificá-la, nada está perdido, podemos inverter tudo aquilo que subvertemos. Devemos isso a nós próprios, ou ao criador (para quem tem a ventura de ter fé), amarmos intensamente, entristecermos ao ponto de não existirem mais lágrimas, alegrarmo-nos tanto até termos espasmos no rosto, rasgarmos o peito e ficarmos de coração aberto e quem brincar com ele, existe sempre o desfibrilhador que o voltará a pôr em funcionamento. Descontrolemo-nos, desesperemo-nos, nada compensa a contenção dos afectos, nada justifica ficarmos na zona de conforto apenas para não sofrermos, apenas para não nos desiludirmos, apenas para não esfolarmos os joelhos.
Se tivermos que levar uns quantos murros, damos uns quantos de volta, se tivermos que subir à mais alta montanha que o façamos, sem olharmos para baixo, se a queda tiver que ser alta, que seja, passamos uma temporada a medicamo-nos e a tratarmo-nos mas certamente sairemos mais reforçados, cheios de orgulho de nós e com o coração maior e pronto para ser novamente bombeado com afectos e emoções no expoente máximo da sua intensidade!

2 Responses to “Essencial”

  1. # Anonymous Anónimo

    Um texto bem escrito e, embora não me identifique com estes factos de vida, identifico-os contigo!!! Agora é só pôr em prática a teoria...

    Good vibes :-)  

  2. # Blogger Sandro

    Essencial és tu... Somos nós!
    Essencial é termo-nos uns aos outros, porque só assim conseguimos (sobre)viver ultrapassando os obstáculos que se nos vão aparecendo na frente!

    Beijo meu...  

Enviar um comentário

のぞくトム

(Voyeurs)

Free Web Site Counter

時間が過ぎるように

(As time goes by)