Nós vamos sempre em frente

Fala-me desses dias, passados entre gritos e gargalhadas, entre um jogo de bola que os rapazes nunca nos deixavam participar e os guelas a carregarem-nos os bolsos, saltávamos ao elástico, jogávamos às escondidas, ríamos até os músculos da barriga nos doerem, explorávamos todos os cantos escondidos de um mundo por descobrir, andávamos perdidas de bicicleta por ruas e ruelas de um bairro que nos acolhia. Os nossos medos de então era engolir pastilhas, não conseguir os cromos da colecção do momento e, para acentuar os nossos receios, era-nos constantemente lembrado que não podíamos falar, nem aceitar nada de estranhos. Lembro-me de quando íamos de mão dada pela rua, com o andar compassado e um rumo a direito, dizíamos entre dentes, para quem nos quisesse ouvir, nós vamos sempre em frente, nós vamos sempre em frente...até ao dia em que esbarrámos com duas senhoras de bom posto, que nos lançaram uma mão pesada ao rosto de cada uma de nós, mas até disso nos rimos! Lembras-te quando fazíamos chamadas anónimas (sim, porque os teus pais trabalhavam na PT e as chamadas eram gratuitas) e aproveitávamos para rirmos um pouco mais, nunca podias contar comigo para essas partidas, ficava sempre demasiado nervosa e logo que a pessoa do outro lado da linha atendia, já estava aos risinhos, arruinando desde logo a nossa combinação minuciosamente engendrada. Quando chovia é que os nossos planos ficavam mais limitados, mas lá íamos nós fazer receitas de farinha, água e açúcar para uma televisão inventada, com câmaras invisíveis e um público entusiasta, ao qual agradecíamos as palmas inaudíveis. No Verão, geralmente, ia contigo e com os teus pais para o parque de campismo da Costa da Caparica, no qual vocês tinham uma roulotte, lembro-me tão intensamente dos fins de tarde, banhados pelo pôr-do-sol, com a luz a pratear o mar vasto que se perdia no horizonte.
A vida encarregou-se de seguirmos sempre em frente, agora os nossos medos são outros, as gargalhadas menos constantes e os horizontes com limites mais definidos, somos aquilo que nunca sonhámos ser, adultos. Os teus pais entretanto divorciaram-se, desfizeram-se da roulotte do parque de campismo e tu saíste do bairro, casaste, tens uma filha, que sei que vais ensinar a rir como nós ríamos porque ambas sabemos que quem se ria como nós nos ríamos, nunca deixa de ser criança.

2 Responses to “Nós vamos sempre em frente”

  1. # Blogger Rubim

    Que saudade ! lugares comuns de crianças felizes... agora, adultos ... porque é que temos de crescer ?  

  2. # Blogger Sandro

    Gostei...
    Consegui ver as imagens do que descreves.
    E gostei de te ver levar um estalo de uma senhora mais cinzenta, que não gostou que fossem contra ela.
    Também tive uma infãncia assim, feliz! E sinto-lhe falta! Mas vou sentir mais, quando um dia for esse tal de adulto que dizes.
    Mas isso será só um dia...  

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