Rascunho

Destapo o bule de chá e de imediato sinto o aroma a hortelã-pimenta a invadir-me, o meu olfacto sorri. Insisto contigo em te servir o chá, verto a água morna de tons dourados na tua chávena, branca com pinceladas de azul esbatido, parecendo pássaros que voam para longe, muito longe.
Várias vezes levas a mão ao cabelo, aparentemente para domar uma madeixa que insiste em cair sobre a tua testa, deixas transparecer algum nervosismo, sentir-te-ás desconfortável, ali, naquela sala, ao pé de mim, onde estamos só nós os dois?
Por detrás da janela, o céu insiste em cobrir-se de nuvens cinzentas, que vão desenhando formas engraçadas, sustêm a respiração ao ponto de parecerem que vão rebentar a qualquer momento. Dizes qualquer coisa que não percebo, aceno com a cabeça e esboço um ligeiro sorriso, insisto em não te compreender.
Enquanto o chá fumega nas chávenas, brinco com um papel entre as minhas mãos, é um poema que quero que tu leias, não quero chamá-lo poema, parece um tanto ou quanto pretensioso, chamo-o antes rascunho. Tudo o que escrevo parece-me sempre um rascunho, na iminência de ser vigorosamente rasgado, mutilo-me sempre que rasgo o que escrevo mas não consigo deixar de rasgar, porque são sempre rascunhos.
Acho que há pouco disseste qualquer coisa sobre o chá, que estava saboroso ou então sobre o tempo que estava desagradável, não tenho a certeza mas soou-me parecido. Num ímpeto, entrego-te o papel, o rascunho, desdobras calmamente e começas a ler, sinto um calor imenso a percorrer-me o corpo, desemboca em gotas de suor que cobrem as palmas das minhas mãos.
Não vejo expressão no teu olhar, os teus lábios permanecem intactos, uma vez mais levas a mão ao cabelo, terminas, voltas a dobrar o papel, insistes em fazer uma pausa antes de começares a falar, novamente não percebo o que dizes, soa-me a algo como falta-lhe métrica ou cerebral ou uso de lugares comuns e finalizas o teu discurso imperceptível perguntando se falo de alguém naquele poema, corrijo-te e digo, poema não, rascunho.
Começa a trovejar violentamente, os vidros são fustigados por uma chuva que vocifera bem alto, levantas-te apressado, dizes que ainda tens muito que fazer, agradeces a companhia, acentuas em tom dramático, a boa companhia. Corro para te abrir a porta e vou rasgando aos poucos o papel que me devolveste, o beijo despede-se antes de eu me despedir de ti - Fala de ti, o poema, meu amor, de ti...

3 Responses to “Rascunho”

  1. # Anonymous Anónimo

    Se o poema fala de mim, porque razão me deste a ler o rascunho?  

  2. # Blogger Sandro

    -"Espera! Não vás ainda... Espera ao menos a noite cair!
    Deixa que seja eu a ler-te o mesmo poema, utilizando
    as pausas no sítio certo, dando ênfase às palavras
    mais importantes... Talvez assim percebas...
    Espera. Não vivas a nossa vida indo sempre embora...
    Espera ao menos a noite cair!"  

  3. # Anonymous Anónimo

    o amor. é branco.
    o amor. é negro.

    o amor. é negro como a alma. e como um mar. e como uma mão. aberta. sobre o rosto. e como um soluçar.

    e como.

    abraço.

    João

    os dias das noites  

Enviar um comentário

のぞくトム

(Voyeurs)

Free Web Site Counter

時間が過ぎるように

(As time goes by)