Cor-de-vazio

Entrei no quarto e vi-te sentado na cama, fixei o teu olhar e reparei que estava transparente como as noites de luar reflectidas nas águas do rio. Respiravas com dificuldade e praticamente não me olhaste, não me sentiste, quando te perguntei como me chamava disseste todos os nomes menos o meu.
Lembro-me de ti, não com esse corpo e com essa cor-de-vazio nos olhos, mas sim com um olhar que traduzia todas as cores do arco-íris, é desse avô que me lembro e que nunca hei-de esquecer, que me pegava ao colo, me contava histórias de encantar e eu sentia-me como uma princesa junto do trono das tuas palavras. Desapareceste naquele dia em que foste internado e te puseram um bypass, como se esse mecanismo artificial de sobrevivência pudesse substituir a vida que tu emanavas.
Agora a princesa abdicou do trono, sou mais uma cidadã do mundo que vai acumulando saudades, de ti, das memórias que nós os dois partilhávamos, grande parte do que sou hoje devo-o a ti, fizeste-me, desenhaste o perfil da minha alma.
Enquanto te observava vegetativo nesse quarto, que tu insistias em dizer que não era o teu, senti-me tão abandonada, pensar que esta era a altura possível para te dizer tudo isto, o quanto te apreciava e agradecer as memórias que me doaste, mas tu limitaste-te a ser uma sombra do que foste, a não existires para além desse corpo feito de trapos.
Fechei a porta para te deixar descansar, como se cansado de viver fosse a única razão de te manter acordado, e por momentos, julguei ouvir pronunciar: Princesa.

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